Dia Mundial do Médico de Família|"O Coração dos Cuidados de Saúde" por João Sequeira Carlos

Sexta-feira, Maio 19, 2023 - 15:30

"Mais do que nunca os sistemas de saúde deparam-se com grandes desafios para a sua sustentabilidade e para o objetivo maior de prestar cuidados a todos os cidadãos de acordo com as suas necessidades. A conjuntura cumulativa do envelhecimento da população, da maior carga de doenças crónicas e de indefinições quanto à organização dos sistemas de saúde, não tem permitido encontrar um rumo para alcançar a estabilidade que seria essencial para os serviços de saúde responderem de forma robusta, com qualidade e segurança, aos problemas que levam as pessoas a procurar ajuda médica. Os sistemas de saúde são organismos complexos que carecem de um coração forte – a Medicina Geral e Familiar!

Com o lema “Médicos de Família – o Coração dos Cuidados de Saúde”, assinalamos o Dia Mundial do Médico de Família em 2023. A WONCA, Organização Mundial dos Médicos de Família celebra a efeméride com iniciativas em todos os países, em cada comunidade, nas Unidades de Cuidados de Saúde Primários, onde diariamente as famílias recorrem ao encontro do seu médico. A Medicina Geral e Familiar cria uma ligação de confiança ímpar entre médico e paciente, entre as equipas de Cuidados de Saúde Primários e as famílias. Este coração forte de um organismo complexo é garantia de mais e melhor saúde e também um fator de coesão social.

A Medicina Geral e Familiar gera nos sistemas de saúde um círculo virtuoso de prestação de cuidados desde o nascimento até à finitude do ser humano, num continuum de promoção da saúde, prevenção da doença e gestão de problemas de saúde agudos e crónicos, desde fases iniciais mais simples até às mais complexas e avançadas.

E ao papel fulcral dos Médicos de Família nos sistemas de saúde, a WONCA associa à efeméride deste ano quatro pilares nos quais está assente a prática da Medicina Geral e Familiar, conducente à saúde e ao bem-estar da população.

São quatro “órgãos” subsidiários do coração dos cuidados de saúde que, como Médicos de Família incorporamos na nossa prática clínica:

Continuidade de Cuidados   
Criamos um vínculo forte com os nossos pacientes, indivíduos e famílias, que acompanhamos ao longo da vida sem nunca lhes dar alta. A certa altura é inevitável a intimidade formal que nos faz sentir parte daquelas famílias. As consultas podem ser momentos de vigilância de saúde e oportunidades para promover estilos de vida saudáveis e prevenir a doença. Emitimos o atestado médico para a carta de condução aos jovens que vimos nascer. Estamos sempre lá e somos nós que ouvimos a ansiedade do primeiro emprego e as emoções do nascimento do primeiro bebé. Muitas vezes as consultas são ocasiões inesperadas para avaliar um problema súbito – uma doença aguda, um dilema sobre um tratamento, um fator de ansiedade na vida familiar ou um sintoma mais estranho para o qual não há uma explicação. E nós explicamos. Vemos os nossos doentes envelhecer ajudando a que se mantenha saudáveis e ativos. Mas também há espaço, e forçosamente bastante, para abordar uma doença crónica que com frequência se pode associar a outras patologias num conjunto de multimorbilidade, muitas vezes complexa. Estamos sempre presentes. De tal modo que os nossos doentes nos confidenciam – “até parece que vive em nossa casa”. A evidência científica revela a importância da continuidade de cuidados associando-a a melhor resultados em saúde e a menores taxas de mortalidade geral[1]. Os sistemas de saúde devem dar prioridade a modelos de organização com prestação de cuidados em continuidade.
 

Cuidados Centrados no Paciente     
Neste pilar deve estar assente a prática médica de todas as especialidades. Contudo, é unanimemente reconhecido que a Medicina Geral e Familiar é o paradigma dos cuidados centrados no paciente. Efetivamente, na nossa consulta e seguindo o princípio hipocrático propalado por Sir William Osler, «é mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que conhecer a doença que o paciente tem». E neste pressuposto de prática clínica deverá também estar organizado o sistema de saúde – centrar a prestação de cuidados nas pessoas e não nas doenças. Do pilar da continuidade decorre o fortalecimento relacional entre nós e os nossos doentes. Todos os dias, no espaço sagrado de cada consulta, utilizamos a empatia genuína como instrumento de diagnóstico, numa abordagem integrada biopsicossocial, e como elemento terapêutico principal com extremo cuidado na dosagem aplicada e nos tempos de administração. Esta ideia foi lançada por Michael Balint[2] ao preconizar que «o médico deve aprender a usar-se como “medicamento” com a mesma habilidade que o cirurgião demonstra no uso do seu bisturi, o clínico na utilização do estetoscópio, e o radiologista na aplicação das suas “lâmpadas”». Nesta aliança inabalável, somos porto de abrigo da pessoa que sofre e provedores dos nossos doentes. Invariavelmente, no final da consulta, ouvimos, ao despedirmo-nos dos pacientes que “só por vir aqui falar consigo, já me sinto melhor”. 
 

Integração de Cuidados
Na imagem conferida pelo lema do Dia Mundial do Médico de Família, somos o coração dos cuidados de saúde. E o terceiro pilar com que a WONCA assinala a efeméride desde ano está diretamente ligado à ideia de que os Cuidados de Saúde Primários são o núcleo do sistema de saúde e o ponto de primeiro contacto. A Medicina Geral e Familiar é o centro de coordenação de todo o sistema, e somos considerados na literatura como médicos que gerem os cuidados integrados de cada doente e das suas famílias[3]. É um trabalho de equipa que coordenamos e que o doente associa à imagem de uma orquestra – “senhor doutor, os meus problemas de saúde têm sido acompanhados por bons solistas de vários instrumentos musicais, mas falta-me um maestro e por isso venho à sua consulta”. E a coordenação de cuidados contempla a integração das diversas especialidades médicas envolvidas e de outras áreas fundamentais neste processo – enfermagem, serviço social, psicologia, nutrição e fisioterapia. Este trabalho de equipa multiprofissional promove a integração de cuidados e esbate as barreiras artificiais entre níveis de prestação tradicionalmente afastados. A colaboração coordenada entre unidades de saúde dos Cuidados de Saúde Primários, Hospitais, unidades de Cuidados Continuados e outras tipologias que funcionam em rede vão de encontro às verdadeiras necessidades de saúde da população e fortalece o sistema de saúde.


Envolvimento da Comunidade         
Não podemos nos podemos assumir como o coração dos cuidados de saúde sem uma ligação efetiva à comunidade. O nosso papel de núcleo coordenador da integração de cuidados pressupõe a colaboração ativa com a população. A governação clínica e da saúde partilhada com os cidadãos deve seguir de braço dado com a mesma lógica na prestação de cuidados. Este modelo de coprodução de saúde é proposto pela Região Europeia da OMS para um futuro sustentável dos sistemas de saúde[4]. Decorre deste modelo a plena participação da população nos seus percursos de saúde com efetiva capacitação para os autocuidados e melhoria de literacia em saúde. Na nossa abordagem centrada no paciente temos de envolver a comunidade, tanto no diagnóstico como ao estabelecer um plano de cuidados. Estamos numa posição privilegiada para auscultar os sinais vitais da comunidade e perceber de que modo impactam na saúde da população. Devemos identificar os determinantes sociais da saúde como elemento fundamental para a avaliação biopsicossocial dos nossos doentes e considerá-los no momento de delinear um tratamento abrangente dos problemas diagnosticados. Os recursos da comunidade devem ser mobilizados para um plano de cuidados global que contemple as diferentes dimensões do processo de doença e que resulte na melhoria do bem-estar físico, mental e social dos nossos pacientes.

No dia Mundial do Médico de Família celebramos a Medicina Geral e Familiar, este ano com um lema que remete para o nosso papel fulcral no sistema de saúde. Contudo, não trabalhamos a solo e é no trabalho de equipa com outras especialidades médicas e profissões de saúde, envolvendo os recursos da comunidade e trabalhando em colaboração com todos os sectores da sociedade, que podemos melhorar verdadeiramente o bem-estar da população. A saúde das famílias que em nós confiam, foi e será sempre o nosso primum movens.

A Medicina Geral e Familiar tem futuro e no atual contexto de transformação digital da Saúde, assume um papel vanguardista no desenvolvimento tecnológico da Medicina e é em simultâneo um reduto que garante os princípios hipocráticos da nossa profissão, salvaguardando a dimensão humanista da relação médico-doente. Temos o dever de transmitir estes valores às novas gerações e ser também o coração do ensino nas escolas médicas.

Feliz Dia Mundial do Médico de Família!"

 João Sequeira Carlos

[1] Pereira Gray DJ, Sidaway-Lee K, White E, et al. Continuity of care with doctors—a matter of life and death? A systematic review of continuity of care and mortality. BMJ Open 2018;8: e021161.
[2] Balint M. The doctor, his patient and the illness. London: Churchill Livingstone; 1993.
[3] Primary care as a hub of coordination: networking within the community and with outside partners. World Health Report – World Health Organization, 2008.
[4] Kickbusch, Ilona & Gleicher, David. Governance for health in the 21st century. World Health Organization – Regional